terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Um homem

Ele virá não como um cavalo vem
tampouco uma cobra, sorrateira
e armada para o bote.
Ele virá como um homem
só, um homem simples, um homem
na medida exata de um homem.
Ele não estará acima do mal e do bem.
Este homem trará tão somente
um corpo com espessura de carne.
Um corpo que não tenha talvez uma história
nem explicações, mas palavras,
sons, ecos, gritos, ruídos e alardes,
ele não precisa de ouvidos para despejá-los,
mas que acolham seu silêncio,
este sim o ruído mal suportável. 
Ele não precisa de olhos que o admirem,
mas que reconheçam nesse corpo
a contida alegria em seu menor gesto.
Um homem e seu corpo,
talhado por aparelhos
e adestrado por batalhas,
ele aprendeu a não esmurrar os muros,
mas a contorná-los.
Há um encontro à espera deste homem,
ele não virá como um cavalo vem
tampouco um cão para ser domesticado,
ele virá como aquele que abandonou seu passado
e esqueceu seu futuro.

Teses sobre o desejo (11)

O desejo é o desejo do Outro. Esta genial fórmula lacaniana divide o desejo em duas partes: o desejo é desejo de desejo, desejo de desejar; e é um desejo de, do, Outro, um desejo outro. Nesta fórmula, portanto, está presente a divisão entre o Mesmo (o desejo do desejo) e o Outro (desejo do outro) que traduz o paradoxo do desejo que circula sobre si mesmo, num arco ou numa dobra, mas sem se fechar ou se completar.  Ora, a incompletude do desejo, seu não-fechamento, é precisamente aquilo que o faz se movimentar, que o impede de se estabilizar como o Mesmo.  Manter-se como o Mesmo é o ideal narcísico que, curiosamente, é também o ideal neurótico o que indica que a neurose é um caso especial do narcisismo, o que Freud, aliás, foi o primeiro a intuir. Ao fechar-se loucamente para a entrada, chegada, para a “penetração” do Outro, o neurótico apenas demonstra o apego à imagem idealizada de si próprio, vendo em qualquer alteridade uma potencial ameaça a sua tão prezada mesmidade.  

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Água-viva

Começa então um caminho,
ele se confunde com o passo
como escondida nos braços
está a promessa do abraço.

No início, só sensações,
estranha esta vertigem,
talvez não seja início
pois não se enxerga a origem.

Aonde quer que se vá
para o passo é só passagem
onde soa doce melodia
avisar não levar bagagem

além do mais difícil afeto,
frágil, mas na carne impresso.
Não seria solução
cortá-lo por falta de nexo.

Tampouco necessário
carregá-lo como um estigma.
Este afeto leva a gestos
que se inscrevem no ar sem enigma,  

porém insondáveis. Como linhas
coladas a uma superfície
e que se integrassem a ela
como a grama numa planície

mas moventes como a água-viva
é a água mais viva e ativa
e que arde, pois é ardência
ela, a chama mais incisiva.

Neste mover não mais se discerne
o que está dentro, o que está fora,
É pulsação, batimento,
um ritmo dizendo Agora!,

a vibração na atmosfera
que faz do ar sopro e alento,
e traz à corrente sanguínea
elétrico estremecimento.

Excede toda posse e senso,
seu sentido qual seria?
Menos andamento que onda,
menos história que alegria.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Here's where the story ends

Aqui a história termina,
e ali ela recomeça,
como num quebra-cabeça
onde faltasse uma peça
que não tivesse importância
pois melhor é desmontá-lo
para juntá-lo em mil arranjos,
polígono de mil lados.
Cada dia é um abalo
para o qual faltam asas de anjo
mas que equilibra no embalo.
O sol lá fora é um fardo,
mas não falha sua fagulha
e ainda dá bom bronzeado.
O olhar da moça é um dardo
mirado em suas certezas,
mal treme sobre o salto-agulha
e nunca leva estabaco.
A vida é o que se segura
como pedras diminutas
que formassem estranho ábaco.
Qual secreta matemática
evitaria o desenlace
certo, a previsível cena?
Não há conclusão tão trágica
que também não tenha graça,
não sua significação cômica,
mas a que no instante acena
com a oportunidade cósmica,
aquela que, num relâmpago,
se funde com o fundo do osso
e dá um sopro no estômago.
Este é o clarão que mais cega
para que a retina fique fina
e que distante distingua
o traço invisível da linha.
Linha de enrolado novelo
ou insólita novela.
Linha para apurado tato
que se desfia sem destino
pois o fio é a própria fibra
com que se arma uma tela.
E que delicada língua
soletraria  a sílaba
com que se desdobra o segredo?
Mesmo a deriva é um enredo
como uma intricada trama
de uma rede em que cada nó
fosse seu ponto central.
Perder-se enfim não é mal,
perder-se é um caminho só,
perder-se é saber quão difícil
seria precisar qual
seu término, o seu início.

Guilherme Preger

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Teses sobre o desejo (10)

“Narciso acha feio o que não é espelho”: o aspecto monstruoso do desejo é o de sua estranheza, de parecer vir de um outro lugar, de não lhe “pertencer”. Portanto, o primeiro ato em relação ao desejo é o de reconhecimento. Reconhecer o desejo é oposto a reprimir o desejo. No lugar de dizer “não quero saber nada disso”, frase predileta dos histéricos e neuróticos ao recusarem a forma monstruosa do desejo, o ato de reconhecer o desejo como um desejo seu, próprio, é o passo inicial de estar “conforme a seu desejo”. É um ato não apenas ético, mas estético, de fazer a “monstruosidade” se tornar algo belo, apenas por uma mudança de perspectiva, como um ato de assumir o próprio desejo. Assim, a famosa “luta pelo reconhecimento” de que falava o filósofo Hegel é travada inicialmente em nossa intimidade. Como querer que os outros nos reconheçam se nós mesmos não nos reconhecemos? Mas aí entra algo de sutil, pois um reconhecimento de si, como um olhar para si próprio, tem algo de paradoxal. Não podemos olhar para nós próprios (i.e. para “nós outros” como bem dizem os ibéricos...) a não ser passando pela alteridade de um olhar que vem de “fora”...  

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

come as you are

Imagem de André Dahmer

ninguém muda ninguém,
nem precisava
se, por debaixo da pele,
revolve a lava,

se, por dentro das veias,
corre álcool e ânsia,
se, no miolo da mente,
habita uma infância. 

-Venha, venha como é,
venha com sua nudez,
venha por inteiramente,
venha já, venha de vez.

ninguém muda ninguém
apenas se abre
o cofre, a fortaleza
guardada por sabres:

para que entre o vento,
para que surja o lance
de dados, erro ou azar,
para a  fortuna ter chance.

- Venha, venha como é,
venha como quiser:
como ave ou como anjo,
um felino ou uma  mulher.

ninguém muda ninguém,
é só um deixar-se
os dias, as noites,
as razões, os disfarces,

o que impede ou previne,
o que provoca alarma:
-Venha, venha como é,
mas não venha com uma arma.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Teses sobre o desejo (9)

Por que se quer reprimir o desejo? Simples a resposta: porque ele é monstruoso. Porque a imagem que ele nos retorna, depois de seu circuito, é deformante, estranha, incongruente. Mas esta estranheza é absolutamente necessária. Ela expressa a alteridade essencial do caráter do desejo. O desejo parece vir de outro lugar, de um lugar estranho e distante. “Este desejo não me pertence”, é a reação clássica do neurótico ou da histérica quando sente a emergência do desejo. É como se um “outro” estivesse desejando, no lugar de nós mesmos. E, na verdade, é esta dialética entre o outro e o mesmo que faz a realidade conflituosa do desejo. Para entender esta dialética é preciso recorrer ao mito de narciso. Narciso é aquele que, segundo a lenda grega, se apaixonou por sua própria imagem. Mas a lenda nos adverte que ao vê-la refletida na superfície de um lago, Narciso ficou enfeitiçado. Entrou, por assim dizer, em “loop”: encontrou a imagem ideal de si próprio e não precisou de mais nada. Completou-se em sua própria imagem perfeita e, assim, nada mais desejou. Tornou-se uma flor que, não por acaso, tem efeitos entorpecentes. Pois, não precisando de mais nada, além de sua imagem perfeita, Narciso adormeceu, adormeceu-se, adormeceu seu desejo. É exatamente para evitar esta identificação narcótica e paralisante que o desejo nos retorna sempre com um aspecto monstruoso...

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Introspecção



Animação: Johandson Rezende



o que for medo, angústia
desespero, incerteza,
desejo de desaparecer
não fugirá
desta fortaleza.

se for pulso e tenso,
impulso de caça,
cobiça e luxúria,
a fome de foder
ficará nesta couraça.

o que for bicho ou planta,
anêmona ou canário,
o instinto canino,
não podem escapar
para fora deste armário.

a rebelião civil,
o motim sem eira,
a guerrilha da mente,
jamais deixarão
o buraco desta trincheira.

o que houver de esperança
e vontade de dança,
resquício de infância,
tudo se guardará
na mais íntima vizinhança.

enfim, o que for fluido,
líquido ou com fragrância,
restarão acumulados
nesta carnosa, espessa
e ansiosa substância.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Teses sobre o desejo (8)

Uma linha “magnética” que vai do sul ao norte, ou dos “membros” inferiores aos “membros” superiores, através de um arco vetorial  é uma boa metáfora para a trajetória do desejo.  E, no entanto, neste percurso, de sua origem sexual ao seu destino “mental”, ocorre um lapso de tempo, um atraso, um retardo. Só podemos saber do desejo sempre “a posteriori”, nunca “a priori”. Um dos fundamentos básicos da psicanálise é justamente o caráter “inconsciente” do desejo: nunca podemos saber de nosso desejo, do que o motivou, a não ser depois de já ter ocorrido, sempre “depois”. Só sabemos do desejo seguindo seus efeitos, isto é, interpretando seus sinais (“sintomas”). “O desejo é a sua interpretação” é uma das primeiras fórmulas lacanianas sobre o desejo. Interpretá-lo é tudo o que podemos saber dele, se é que queremos saber dele. Normalmente, para a imensa maioria das pessoas, não: não se quer saber do desejo, só se quer reprimi-lo...      

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Teses sobre o desejo (7)

Para a psicanálise, o que causa o desvio do sexo de seu objetivo “natural” reprodutivo é o desejo. Aqui há uma relação dialética: por um lado, o sexo, como corte, rasgo, fissura, é o que possibilita a emergência do desejo; por outro, o desejo funciona como um elemento perturbatório que desvia o sexo de sua rota “natural”. Sem o desejo, o sexo entre os seres humanos seria uma atividade tão regular e limitada como em todos os demais animais. Sem o sexo, no entanto, não haveria desejo. Podemos imaginar didaticamente o sexo como um corte passando pela linha da cintura e dividindo cada pessoa entre um pólo sul, abaixo da cintura, e um pólo norte, acima da cintura, tal como um dipolo magnético. Nesta modelagem, o desejo poderia ser desenhado como uma linha vetorial “magnética”, saindo do sul e fazendo uma curva, uma deflexão, um arco, afastando-se e atravessando o “mundo”, mas retornando afinal ao pólo norte como ponto de chegada.  Assim, o desejo não conseguiria completar uma “volta” completa, exatamente porque o corte sexual gera uma área de “sombra”  refratária entre os dois pólos. É exatamente esta impossibilidade de “completar” o ciclo que faz do desejo algo tão incongruente, incompleto, fissurado, ou, em outra palavra, “estranho”... 

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Teses sobre o desejo (6)

A polimorfia sexual humana foi negada através dos tempos por valores religiosos e morais, mas foi defendida pela psicanálise desde o início, para escândalo da mentalidade puritana do início do século XX. A dissociação entre sexo e reprodução, no ser humano, ainda é negada, por exemplo, pela própria Igreja Católica e esta negação é um valor moral que pesa sobre milhões de casais. Porém,  quando a pílula anticoncepcional surgiu na década de 60, esta invenção tecnológica foi uma comprovação prática da teoria psicanalítica, assim como o laser, por exemplo, surgido na mesma época, é uma comprovação da física quântica (contemporânea da psicanálise). Mas o que, no ser humano, causa esta dissociação? Por que o comportamento sexual humano não é programado como nos demais seres? Isto não iria contra a própria seleção natural que precisa garantir e otimizar a reprodução sexual combinatória? Fazer sexo sem visar a reprodução da espécie não é contraproducente, na perspectiva evolucionista?  Sem dúvida, o casamento, por exemplo, é um tipo de “programa” evolutivo, uma ritualização do acasalamento sexual e uma forma social de garantir a continuidade do “homo sapiens”. Mas, como qualquer casal sabe, o casamento não passa de um daqueles “pretextos” que os cônjuges assumem socialmente para realizar intimamente uma variedade de práticas não lá muito “politicamente corretas” de acordo com os códigos evolutivos...

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Teses sobre o desejo (5)

Com o sexo, a perda de autonomia reprodutiva trouxe, para cada ser vivo, a questão da alteridade. Esta entrada súbita do “outro” para a vida, no lugar da existência meramente egotística dos primeiros seres unicelulares, só pode ter sido recebida como um verdadeiro trauma para o processo da vida em geral. Assim, não surpreende que a maioria dos seres tenha suas formas reprodutivas estabelecidas através de férreos rituais de acasalamento. Para a quase totalidade das espécies, salvo a humana, a cópula sexual se realiza através de formas determinadas, com limites de ação muito estreitos aos “parceiros”. Este ritualismo sexual programado se justifica como um limite à abertura da “alteridade” exigida pela relação sexual. Reduzir ao máximo à entrada do “acaso”  e permitir a  que a seleção natural faça seu trabalho combinatório através do sexo é objetivo dos rituais instintivos de acasalamento que possuem fortes pregnâncias biológicas: cores, cheiros, sons... Nos animais, portanto, a cultura (o ritual) se alia à natureza (emanações biológicas) para garantir a continuidade da espécie.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Teses sobre o desejo (4)

Evidentemente, o desejo tem a ver com a sexualidade. O que é o sexo em relação à libido e ao desejo? Sexo é exatamente o que diz seu nome. A palavra “sexo” tem a mesma raiz etimológica que “secção” e “seccionamento”. Sexo é corte,  rasgo, fissura. Durante aproximadamente 3 bilhões de anos a vida se desenvolveu na Terra através da reprodução assexuada. A cissiparidade significava autonomia reprodutiva, cada organismo se autoclonando com independência e sem auxílio dos “outros”. Quando, há cerca de 1 bilhão de anos,   surgiram os primeiros eucariontes sexualmente ativos, esta mutação deve ter sido considerada como uma aberração e um verdadeiro trauma.  Para estes novos seres vivos, só era possível seguir adiante arranjando um “parceiro” para colaborar. Ou em outras palavras, mais filosóficas: com a sexualidade, cada ser teve que se abrir a um “outro”  para que a espécie continuasse. E com a entrada do “outro” na cena existencial vieram duas coisas: a individualidade (cada ser tinha um código genético único) e a mortalidade.  Antes, cada organismo era uma mera cópia genética um do outro e não havia, por assim dizer, individualidade, tampouco morte.  Após, cada ser passou a trazer em si uma marca genética singular que a morte faz desaparecer. Mas, apesar da perda de autonomia reprodutiva, a eclosão da sexualidade se revelou um sucesso evolutivo. Antes, a evolução só se dava através de mutações quase sempre fatais e com um passo altamente moroso. Com o sexo, a combinação genética dos gametas produziu rapidamente uma diversidade de seres que tornou o fenômeno da vida muito mais resistente, por sua complexidade, às ameaças de catástrofes cósmicas, geológicas e climáticas. E muito mais complicado também...

Teses sobre o desejo (3)

Desejo e linguagem estão assim intrinsecamente correlacionados.  O desejo é sempre Simbólico enquanto a libido é Real (e o amor, Imaginário, mas este é outro assunto...). Podemos entender o desejo não como algo “natural”, algo que nos comporia em acordo com a natureza. Assim é o instinto: uma sincronia do ser com a natureza. Já o desejo se estabelece sempre como algo estranho, defasado, “assíncrono”: é antes uma fonte de perturbação ao nosso caráter “natural”.  É este caráter perturbatório, aliás, a fonte de sua repressão, já que aprendemos com a psicanálise, que o desejo é sempre reprimido. O importante da relação entre linguagem e desejo é o que torna toda figura de linguagem também uma figura de desejo. Todo símbolo, toda palavra, não traz apenas um significado que precisa ser decifrado, mas também um desejo que demanda interpretação. Todo signo transmite alguma coisa a mais do que sua informação: por que ele foi emitido? O que se deseja, ao se comunicar alguma coisa?

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Teses sobre o desejo (2)

Será o desejo exclusivamente humano? É certo que compartilhamos o universo da libido com todos os demais seres vivos. Mas libido e desejo são diferentes, embora relacionados. É difícil conceituar libido que, segundo Lacan, é uma “ficção necessária”. A libido se confunde com a própria vida: é a insistência em divergir, se multiplicar, continuar ou, em outras palavras, a luta da vida contra a tendência implacável do universo à entropia, à desorganização, isto é, a morte. Característica da vida é a sua obstinação em se repetir ou, em termos mais técnicos, de se replicar. Podemos entender a libido como um algoritmo de replicação baseado num código genético, o DNA, comum a todos os seres. Ora, este algoritmo genético é a base do que, nos animais, chamamos de “instintos”, que são comportamentos inatos e “programados” na maioria dos seres. Assim, as tartaruguinhas ao sair do ovo já correm de imediato para o mar, os bezerrinhos já sabem onde procurar o leite de suas progenitoras. Já o bebê humano, não: ele não pode ir até o seio da mãe. É o seio da mãe que tem que ir até ele.  Daí que nos seres humanos, haja algo mais do que a necessidade que se impõe como um “instinto” interno: ela precisa ser atendida e para ser atendida precisa ser demandada (“quem não chora não mama”...).

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Teses sobre o desejo (1)

O que se deseja? Por certo que não um objeto que, uma vez obtido, o possuiríamos.  Para falar como os engenheiros, o desejo não é “orientado a objetos”. Mas para onde aponta o desejo, afinal?  Antes de chegar a seu destino, se chegaremos a algum lugar, ou se é que o desejo tem um lugar, talvez seja interessante começar pela linguagem, onde o desejo se instala, se incrusta, segundo a psicanálise. O bebê chora. O recém-nascido não sabe de nada, ele apenas sente o mundo como um incômodo, um desconforto violento. Seu choro nem sequer é um choro, ele apenas se exprime de maneira imediata, pura expressão direta. Então vem o seio da mãe. O bebê sente a delícia provisória do seio inundar sua carne como ondas de prazer. Então ele dorme. E depois volta o desconforto, aquela sensação insuportável retorna. E o bebê chora. E o seio da mãe logo se apresenta. E o bebê retorna ao mundo delicioso da dor postergada no mamilo sugado. Para a psicanálise, a linguagem se inicia na conexão lógica que se estabelece entre o choro e o seio materno, entre a necessidade que se “apresenta” no choro como simples dor de existir, que o bebê sente de maneira bruta e primordial, e a demanda por alívio, que se “representa” no seio materno. Porém, entre choro-dor e seio-delícia há um atraso, uma defasagem. Em sua demanda, o bebê quer ser prontamente atendido, mas há uma demora, um hiato. O desejo é esta lacuna.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Não tema

Imagem de Maria Matina

Não tema
o que não se controla,
o momento do chute
ou a trajetória da bola.

Não tema
o que não se resolve,
a palavra no poema
ou uso do revólver.

Não tema
o que não dá para apagar
como a trepada dos pais
ou a bomba nuclear.

Não tema
a ausência de temas,
pois há sempre uma história
para se criar com os problemas.

Não tema
se na última reforma
acabaram com o trema,
pois é só mais uma norma.

Não tema
o próximo imprevisto.
Quem foi que disse
para se preocupar com isto?

Não tema
mais uma rima,
é assim que se constrói
uma obra-prima.

Não tema
a vizinhança da morte.
Talvez esta presença
seja o que dá um norte.

Não tema
o que não faz sentido,
pois não fazer sentido
já é também um sentido.

Não tema
a segunda-feira
se há toda a semana
para alcançar o que se queira.

Não tema
se o poema nunca termina:
é apenas uma metáfora
de sutileza pouco fina.

Não tema!
Já que basta pôr um fim
sabendo que se recomeça
seja assado, seja assim.

poema de Guilherme Preger

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Teses para o Ecossocialismo XXI (1)

Parafraseando Walter Benjamin, o capitalismo tardio consumista promove a privatização da coisa pública. O ecossocialismo responde com a politização da vida privada.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Eleições (11-final)

Mas o que seria uma política para além dos aparelhos de estado? Inicialmente é preciso rejeitar a ingenuidade de que é possível criar uma situação “não-aparelhada”.  Ganhar as ruas, retornar ao princípio básico de que toda política nasce nas ruas pela mobilização popular, que é nas ruas que se organizam as coletividades para as atividades políticas elementares tais como demandar, protestar, pressionar e, em extremos, interromper o livre curso das coisas, não significa esquecer que toda ação política ao final deve ser sustentável e que esta sustentabilidade é obtida através de diversos tipos de aparelhos sociais.  Como abordar as urgentes questões sociais quando os partidos políticos deixaram de ser arenas abertas de discussões para atuarem como máfias em nome de interesses particulares? Talvez devamos, em épocas de crise, acrescentar às tarefas mencionadas, que são as mais básicas de toda política, a prática da invenção. Invenção que pode aproveitar a lacuna aberta pela indiferença popular e a ausência de fé e compromisso político. Significa inventar não novos aparelhos, mas sobretudo novas aparelhagens políticas. Estas novas aparelhagens, que seriam autônomas em relação aos aparelhos (p.ex. os Partidos), deveriam prover dispositivos públicos que funcionariam socialmente como fóruns de discussão e proposição de ideias. Aparelhagens que não significassem mais controle social e sim espaços de convivência e compartilhamento de ideias.  Teríamos um redimensionamento do conceito de participação política com a presença voluntária nestes espaços (Isto é muito mais importante do que a estéril discussão se o voto deveria ser obrigatório ou não. Atualmente  não está fazendo a menor diferença...).  E, sem dúvida, essas aparelhagens contariam com os recursos cibernéticos que hoje tornam possível uma participação virtual, não-localizada, expandindo sua potencialidade. E a partir daí novas coletividades poderiam surgir.  Não é isso que em 68 os jovens queriam dizer quando foram às ruas e pichavam as paredes exigindo “a imaginação no poder”?  

Eleições 2010 (10)

Mas como passar da indiferença e do cinismo para a participação política? Pode-se dizer que aí é que reside o problema maior. As velhas estratégias de engajamento já não mais funcionam. Diante do fracasso político de sua geração, ainda na década de 80, o cantor Cazuza dizia que precisava de uma ideologia para viver. O problema é que as antigas ideologias já não convencem mais.  Mas é um engano supor, por outro lado, que já não há mais novas ideologias ou que nenhuma é mais convincente. Ao contrário, na sociedade de consumo capitalista elas se tornaram até mais sutis e, por isso mesmo, mais persuasivas. A típica ideia de que devemos abandonar a esfera pública e deixá-la  à mercê de gestores para  nos dedicar integralmente aos afazeres privados é uma poderosa ideologia.  Esta ideologia da não-ideologia é a chave para um consumo livre e sem “culpas” dentro da esfera privada enquanto outros se encarregam de decidir nossos destinos sociais. Ao mesmo tempo em que se assume que não há mais ideologias, uma série de novas questões se torna premente: a questão ecológica que ultrapassa as fronteiras nacionais, incluindo o tema urgente do aquecimento global, os obstáculos crescentes ao livre trânsito dos trabalhadores, a necessidade de regulação social das pesquisas biogenéticas, a importância da discussão  democrática dos novos rumos tecnológicos, o debate acerca dos impactos da geração energética no ambiente e na sociedade,  o livre acesso à informação e ao conhecimento para que estes não se tornem mercadorias e  o controle das patentes em questões que englobam a saúde pública e o patrimônio biogenético. Uma simples conferida nos programas dos principais partidos políticos mostra que suas plataformas passam ao largo da maioria destas questões. Mas a preocupação maior vai noutro sentido: não será que a forma dos aparelhos, baseada em partidos políticos centralizados, não se tornou obsoleta frente a estes novos desafios? Será que nossa incredulidade em sua função não significa que a política está para além dos aparelhos? 

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Eleições 2010 (9)

O grau 0 político, a escolha por um sistema de administração de pessoas no lugar do real exercício da luta política, é o fim da ideia da eleição como representatividade. De fato, os eleitos já não mais “representam” os cidadãos que os elegeram, pois já não há mais o elo compartilhado seja de um conjunto de ideias (ideologia), seja mesmo de um projeto de governo. Eles foram ou serão eleitos como “gestores” de aparelhos e já não carregam mais em si as expectativas das parcelas do eleitorado por mudanças sociais. Neste processo os partidos se desfazem, pois ninguém mais “toma partido” de ideia nenhuma, pois simplesmente não há mais ideias. Mas talvez haja algo de positivo nesta situação catastrófica. Talvez chegar “ao fundo do poço” tenha o caráter benéfico de produzir uma inflexão e não ficar preso ao lodo do “quanto pior melhor” fascista. Esta inflexão seria a produção de certa indiferença ao caráter determinante dos aparelhos na organização social. É verdade que esta indiferença pode significar a difusão de um cinismo generalizado, o que aliás já é evidente socialmente. Porém, este cinismo é antes um sintoma desta indiferença do que sua causa. Ele produz, ou é índice de, um distanciamento em relação aos aparelhos de poder como pólos de decisão pública. Este distanciamento significa, sobretudo, a perda da crença na efetividade política dos aparelhos. E de fato, para que os aparelhos de poder funcionem, é preciso que se creia neles ou, ao menos, que se finja crer. E mesmo este fingimento é hoje inviável...

Eleições 2010 (8)

A ausência de menção no programa dos candidatos em relação ao trabalho é um exemplo claro de despolitização da campanha nestas eleições. É como se o trabalho tivesse se tornado um assunto exclusivo da vida privada das pessoas e não fosse um assunto público. O que nos leva novamente ao tópico do grau 0 político e nos faz compreender melhor o fenômeno do lulismo. Eleito em 2002 como um representante típico do sindicalismo brasileiro e, enfim, do próprio mundo do trabalho, Lula só se tornou aceito e “adotado” pelas elites econômicas e financeiras do país, que hoje o apóiam em sua maioria, como alguém que poderia “domesticar” as crescentes tensões sociais da vida brasileira, incentivadas pela histórica desigualdade social. Estas tensões corriam o risco de sair de controle depois do “encolhimento” do Estado, levado a efeito pelo tucanato anterior e sua política neo-liberal. O lulismo teve a tarefa de absorver na imensa malha do estado os movimentos sociais e suas crescentes demandas. Lula, num certo sentido, “patrimonializou” os movimentos sociais brasileiros. Assim, ocorreu o paradoxo de que um representante das “esquerdas históricas” tenha conseguido com sucesso despolitizar a vida nacional como seus antecessores não teriam jamais pensado. Um exemplo típico é o MST: o que representa de ameaça à ordem instituída o Movimento dos Sem-Terra em relação ao que representava nos anos de FHC, quando era considerado nada menos que a figura de um movimento semi-guerrilheiro?

Eleições 2010 (7)

Sociólogos quebram a cabeça tentando entender a imensa popularidade de Lula após 8 anos de governo e a atribuem, erroneamente, à existência de benefícios de assistência social, como a bolsa-família. Mas a miséria de menos de 100 reais da bolsa não explica o fato de cerca de 20 milhões de pessoas que cruzaram a linha de pobreza nos últimos anos. Este fato se deve basicamente ao aumento do salário mínimo que puxa, entre outras coisas, a recuperação econômica. É sem dúvida um fator importantíssimo da popularidade do presidente. Porém, ele vem acompanhado de mais uma contradição: a de que a participação da renda do trabalho no PIB não tenha aumentado no mesmo grau, ou não tenha relativamente aumentado. Isto poderia explicar a persistente rejeição a Lula, que é mais presente na classe média do que nas elites, além de um possível preconceito classista. Esta ainda pequena participação do salário na conta do PIB se deve sobretudo ao fato do crescimento econômico brasileiro continuar vinculado à exportação de commodities que além de gerarem menos emprego, também tem baixo valor agregado. Aliás, a respeito da renda do trabalho, é notável que nenhum candidato tenha colocado em seu programa um compromisso de elevar esta renda, ou seja, de aumentar o poder aquisitivo da massa trabalhadora, o que deveria ser um programa mínimo de governo. É que ainda não se convenceram de que é o trabalho, e apenas o trabalho, que produz riqueza social, como provou o velho barbudo alemão há mais de 100 anos...
http://muitopelocontrario.wordpress.com/2010/06/22/brasil-cresce-renda-do-brasileiro-cresce-pobreza-diminui/

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Eleições 2010 (6)

A manutenção das UPPs também impõe uma outra questão, a da migração da violência. Ou em outras palavras, as UPPs não resolvem os problemas de violência, que são antes estruturais do que conjunturais, mas o “deslocam”. O último mapa de violência já atesta uma interiorização da criminalidade brasileira e uma migração para áreas recentes de desenvolvimento econômico, como Macaé que, em menos de 10 anos, se tornou uma das cidades mais violentas do Brasil. Áreas assim até então virgens de criminalidade e razoavelmente bucólicas se vêem invadidas por atividades criminosas que, como no caso das favelas, minam sua própria economia. Por outro lado, a diminuição da criminalidade observada conjuntamente em várias capitais brasileiras andou de par não com estratégias de combate policial, mas com a elevação de renda proporcionada pelo aumento do salário mínimo. Um exemplo claro, é que nas duas únicas capitais que figuram entre as 10 cidades mais violentas, Maceió e Recife, são capitais em que a linha de pobreza não diminuiu sensivelmente (ver mapa de violência 2010). Estes fatos, aparentemente contraditórios e paradoxais, de que tanto a riqueza quanto a pobreza atraiam a violência demonstra pelo menos 2 pontos: 1- uma riqueza exógena que não seja produzida em nome da própria população (como é o caso do comércio de drogas em favelas e num outro extremo, o do petróleo para cidades como Macaé) não contribui para a diminuição da criminalidade, antes a incentiva; 2- uma distribuição mais equitativa de renda produzida pela renda endógena promovida pelo aumento de salário pode ser mais eficaz para a redução da criminalidade do que qualquer estratégia de combate policial.


mailto:http://www.institutosangari.org.br/mapadaviolencia/

Eleições 2010 (5)

Pacificar as comunidades é, sem dúvida, uma necessidade política premente, condição para que ações de urbanização e inclusão se desenvolvam nestas coletividades. É fundamental cortar o nó econômico que liga a favela ao lucrativo comércio de drogas. Pois este comércio sempre empregou pouca gente (por mais que o preconceito atemorizado de classe média diga o contrário) e ainda impediu que a favela seguisse empreendimentos próprios de auto-gestão comunitária. A emancipação das favelas passa antes de tudo por sua revitalização econômica, pela sua capacidade de desenvolver trabalhos em várias áreas, o que o tráfico de drogas inibia. Afinal o comércio de narcóticos é apenas um empreendimento exógeno à vida real das favelas. Então a questão das UPPs se coloca: até quando é possível manter uma “ocupação” que implica numa vida sob segurança de estado permanente? E até que ponto esta ocupação não será apenas mais um capítulo da história social do Estado brasileiro de se opor e desmontar todas as iniciativas populares que se desenvolvam fora de suas asas, o assim chamado, “patrimonialismo brasileiro”, descrito por tantos historiadores e sociólogos, uma marca tradicional de nossa organização política deficiente?

Eleições 2010 (4)

É preciso admitir que as UPPs são uma novidade na estratégia policial mais recente. É verdade que o mesmo governo que vem implantando as UPPs iniciou sua gestão com o uso de uma violência policial inédita que gerou um extermínio policial no Complexo do Alemão, jamais explicado e igualmente jamais cobrado socialmente. Em certos países, uma ação genocida como aquela teria obviamente feito cair o governador e seus auxiliares, mas nenhum deles teve sequer que responder judicialmente, numa prova cabal da anestesia política social. O evento da derrubada de um helicóptero policial na favela dos Macacos em Vila Isabel marcou então uma inflexão na estratégia de polícia. Às custas de um recrutamento enorme de novos policiais, através de concursos públicos que, de fato, geram empregos, mas oneram sobremaneira os custos da administração e fazem com que a balança dos investimentos públicos penda decisivamente para a área de segurança, em detrimento de outras, as UPPs configuram uma nova estratégia de ocupação de longo prazo “pacífica”. Não se sabe até onde vai este “pacífica”, pois as invasões e ocupações da Polícia Militar são precedidas por “silenciosas” e “obscuras” ações de “limpeza” do Bope, o Batalhão de Operações Especiais (não por acaso, protagonista do filme Tropa de Elite) prudentemente excluídas de cobertura pela imprensa. Mas se é verdade que estas ocupações ocorrem de forma realmente pacífica, sem o dispêndio de tiroteios nem custo de vidas humanas, a pergunta que se faz é: por que não foram tentadas antes? Não era pois, absolutamente estranho, que as intervenções policiais fossem medradas por uma dúzia de adolescentes, mesmo que fortemente armada? Ou era interessante, do ponto de vista do controle policial, que o tráfico de drogas fosse realizado na anacrônica forma de atacado em bocas de fumo que estavam longe de serem desconhecidas? E afinal haverá, ainda, algum tipo de negociação obscura entre o Estado de Direito e o Estado paralelo, antes que a operação de ocupação ocorra? Os últimos eventos relacionados ao sequestro de turistas no Hotel Intercontinental parecem sugerir algo deste tipo...

Eleições 2010 (3)

O fascismo já é claramente presente na sociedade brasileira e tem sua marca no aumento de violência e criminalidade que assolam a população. Estratégias policiais de repressão foram tentadas nos últimos anos, algumas com mais sucesso do que outras. O filme Tropa de Elite e sua  recepção popular é uma evidência de que estratégias violentas de repressão estimulam as inclinações mais fascistas da massa. É óbvio que, historicamente, sempre houve um conluio entre o chamado Estado de direito e o Estado paralelo que se armou nas comunidades carentes. Isto confirma a hipótese de que não haja um vazio de estado que não seja ocupado por algum aparelho mafioso de controle. Ao que parece a continuação de Tropa de Elite 2, em breve nos cinemas, aborda justamente este arranjo entre a política “oficial” e a política “paralela” dos grupos mafiosos, ligados ao tráfico e às milícias. Ou em outras palavras: o “Estado de direito” não passa de uma impostura ideológica que responde dialeticamente ao “Direito de Estado”, clamado pelas comunidades periféricas, carentes sobretudo da presença dos mais simples aparelhos de cidadania eficientes.

Eleições 2010 (2)

Ora, este nível zero de participação política talvez tenha sua necessidade histórica. A primeira questão que surge é: será possível descer mais baixo? O que seria uma participação popular “negativa”? uma sugestão de resposta seria: abaixo do grau 0 de participação há o fascismo. O fascismo supõe não apenas se desonerar da vida política, mas criar um clima de animosidade constante contra qualquer mobilização popular por mudanças. Não é de hoje que o surgimento do fascismo está ligado não apenas ao adormecimento político de e da massa, mas à eclosão do moralismo que consiste em denunciar o ambiente necessariamente “corrupto” de toda política. O moralismo é, claramente, uma estratégia da direita, para quem a moral antecede sempre a política: a boa política é aquela feita pelos bons homens, isto é, os moralmente corretos. Para a esquerda, ao contrário, a política deve anteceder a ética: só é possível tomar uma decisão realmente ética num campo livre de determinações sociais opressivas. E a boa política deve sempre clamar pela justiça, contra toda a opressão.

Eleições 2010 (1)

As eleições de 2010 marcam o grau zero da política. Já alguns anos que a política vem sendo reduzida a uma mínima participação popular. É a derradeira vitória da proposta política da democracia (neo-)liberal: o que se espera de participação cidadã é apenas entrar de 4 em 4 anos numa fila e apertar o botão de uma máquina. Não mais se debatem agendas, programas, direitos nem sequer ideias. Nada a ver com a luta pela transformação social. Trata-se apenas de escolher entre gestores pré-programados que levarão adiante a administração dos aparelhos de estado. Mas é preciso admitir que esta fórmula gerencial de lidar com a "coisa pública" corresponda a um secreto desejo inerente à sociedade de consumo capitalista: o voto não significa participação, ele atende antes à necessidade da população de se desonerar da tarefa política que supõe atividades trabalhosas, tais como lutar, protestar, pressionar, formular ideias, etc., dando oportunidade para que as pessoas possam se dedicar integralmente aos seus afazeres "privados" enquanto delegam o “custo político” da vida pública aos gestores eleitos.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Pedras Portuguesas




O calçamento das pedras acompanha as ondulações do terreno e faz do andar algo mais natural. Quando eu era criança, me perguntava que artesão havia conseguido formar o mosaico de pedras com tal exatidão, como um quebra-cabeça. Sobre as formas de ondas traçadas com as pedras negras no calçadão da orla, gostava de percorrê-las continuamente, fazendo as curvas como num surfe imaginário.Pelos diversos mosaicos das figuras, a caminhada seguia por arabescos de linhas e sentidos abrindo-se num emaranhado de encruzilhadas e derivas. A repetição das formas geométricas gravadas com
as pedras trazia uma visão de vida para a criança que as percorria: do eterno retorno das rotinas do cotidiano à intervenção inesperada do destino.

Incêndio

Insuportável. O pobre container, a caixa porosa onde se alojava a carne despojada agora mal sustenta suas vibrações. Ondulações repetidas que se estendem indefinidamente, para as quais não se entendem suas codificações e mensagens. Apenas pulsações. Os contornos se desfazem e se pulverizam e como num espalhamento de rádio-isótopos, a irradiação contamina o ambiente com o excesso de sua inconsequência. Nenhum grito, nenhuma ardorosa ou arrebatada vocalização seria suficiente. Tão só a claridade ofuscante e térmica desta sensação infra-vermelha. E na atmosfera iridiscente que envolve com um halo a desfiguração desta silhueta, circunvoluções fosforescentes se elevam como anéis de fumaça, como se transpassada pelo bombardeio solar de bilhões de neutrinos. E nada mais cabe a ser sugerido, somente sói o excitado silêncio que se desprende deste sôfrego, intenso, íntimo incêndio.
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Imagem de Fernanda Franco

Reprincípio

O q define um jogo? Não é só seu espírito lúdico, uma vez q o lúdico é uma consequência de seu mundo. Segundo o antropólogo Roger Caillois um jogo é composto de 4 elementos: o acaso (alea), a luta (agon). o mundo (mimeo) e o fim (ilinx). Ou seja, um jogo é um mundo q surge por acaso, q depende de uma luta para existir, mas q pode desaparecer a qualquer instante. Um jogo é uma atividade q compreende sua contigência radical, sua precariedade, sua provisoriedade e q aceita sua finitude. Mas o fundamental do jogo, eu diria, depende de uma coisa só: ele supõe sempre um recomeço, um novo princípio, um renascimento. Só assim, a derrota, a morte, o aniquilamento, são concebíveis no jogo: pois haverá sempre uma nova chance, um retorno, um reprincípio.
http://en.wikipedia.org/wiki/Roger_Caillois