sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Teses sobre o desejo (9)

Por que se quer reprimir o desejo? Simples a resposta: porque ele é monstruoso. Porque a imagem que ele nos retorna, depois de seu circuito, é deformante, estranha, incongruente. Mas esta estranheza é absolutamente necessária. Ela expressa a alteridade essencial do caráter do desejo. O desejo parece vir de outro lugar, de um lugar estranho e distante. “Este desejo não me pertence”, é a reação clássica do neurótico ou da histérica quando sente a emergência do desejo. É como se um “outro” estivesse desejando, no lugar de nós mesmos. E, na verdade, é esta dialética entre o outro e o mesmo que faz a realidade conflituosa do desejo. Para entender esta dialética é preciso recorrer ao mito de narciso. Narciso é aquele que, segundo a lenda grega, se apaixonou por sua própria imagem. Mas a lenda nos adverte que ao vê-la refletida na superfície de um lago, Narciso ficou enfeitiçado. Entrou, por assim dizer, em “loop”: encontrou a imagem ideal de si próprio e não precisou de mais nada. Completou-se em sua própria imagem perfeita e, assim, nada mais desejou. Tornou-se uma flor que, não por acaso, tem efeitos entorpecentes. Pois, não precisando de mais nada, além de sua imagem perfeita, Narciso adormeceu, adormeceu-se, adormeceu seu desejo. É exatamente para evitar esta identificação narcótica e paralisante que o desejo nos retorna sempre com um aspecto monstruoso...

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Introspecção



Animação: Johandson Rezende



o que for medo, angústia
desespero, incerteza,
desejo de desaparecer
não fugirá
desta fortaleza.

se for pulso e tenso,
impulso de caça,
cobiça e luxúria,
a fome de foder
ficará nesta couraça.

o que for bicho ou planta,
anêmona ou canário,
o instinto canino,
não podem escapar
para fora deste armário.

a rebelião civil,
o motim sem eira,
a guerrilha da mente,
jamais deixarão
o buraco desta trincheira.

o que houver de esperança
e vontade de dança,
resquício de infância,
tudo se guardará
na mais íntima vizinhança.

enfim, o que for fluido,
líquido ou com fragrância,
restarão acumulados
nesta carnosa, espessa
e ansiosa substância.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Teses sobre o desejo (8)

Uma linha “magnética” que vai do sul ao norte, ou dos “membros” inferiores aos “membros” superiores, através de um arco vetorial  é uma boa metáfora para a trajetória do desejo.  E, no entanto, neste percurso, de sua origem sexual ao seu destino “mental”, ocorre um lapso de tempo, um atraso, um retardo. Só podemos saber do desejo sempre “a posteriori”, nunca “a priori”. Um dos fundamentos básicos da psicanálise é justamente o caráter “inconsciente” do desejo: nunca podemos saber de nosso desejo, do que o motivou, a não ser depois de já ter ocorrido, sempre “depois”. Só sabemos do desejo seguindo seus efeitos, isto é, interpretando seus sinais (“sintomas”). “O desejo é a sua interpretação” é uma das primeiras fórmulas lacanianas sobre o desejo. Interpretá-lo é tudo o que podemos saber dele, se é que queremos saber dele. Normalmente, para a imensa maioria das pessoas, não: não se quer saber do desejo, só se quer reprimi-lo...      

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Teses sobre o desejo (7)

Para a psicanálise, o que causa o desvio do sexo de seu objetivo “natural” reprodutivo é o desejo. Aqui há uma relação dialética: por um lado, o sexo, como corte, rasgo, fissura, é o que possibilita a emergência do desejo; por outro, o desejo funciona como um elemento perturbatório que desvia o sexo de sua rota “natural”. Sem o desejo, o sexo entre os seres humanos seria uma atividade tão regular e limitada como em todos os demais animais. Sem o sexo, no entanto, não haveria desejo. Podemos imaginar didaticamente o sexo como um corte passando pela linha da cintura e dividindo cada pessoa entre um pólo sul, abaixo da cintura, e um pólo norte, acima da cintura, tal como um dipolo magnético. Nesta modelagem, o desejo poderia ser desenhado como uma linha vetorial “magnética”, saindo do sul e fazendo uma curva, uma deflexão, um arco, afastando-se e atravessando o “mundo”, mas retornando afinal ao pólo norte como ponto de chegada.  Assim, o desejo não conseguiria completar uma “volta” completa, exatamente porque o corte sexual gera uma área de “sombra”  refratária entre os dois pólos. É exatamente esta impossibilidade de “completar” o ciclo que faz do desejo algo tão incongruente, incompleto, fissurado, ou, em outra palavra, “estranho”... 

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Teses sobre o desejo (6)

A polimorfia sexual humana foi negada através dos tempos por valores religiosos e morais, mas foi defendida pela psicanálise desde o início, para escândalo da mentalidade puritana do início do século XX. A dissociação entre sexo e reprodução, no ser humano, ainda é negada, por exemplo, pela própria Igreja Católica e esta negação é um valor moral que pesa sobre milhões de casais. Porém,  quando a pílula anticoncepcional surgiu na década de 60, esta invenção tecnológica foi uma comprovação prática da teoria psicanalítica, assim como o laser, por exemplo, surgido na mesma época, é uma comprovação da física quântica (contemporânea da psicanálise). Mas o que, no ser humano, causa esta dissociação? Por que o comportamento sexual humano não é programado como nos demais seres? Isto não iria contra a própria seleção natural que precisa garantir e otimizar a reprodução sexual combinatória? Fazer sexo sem visar a reprodução da espécie não é contraproducente, na perspectiva evolucionista?  Sem dúvida, o casamento, por exemplo, é um tipo de “programa” evolutivo, uma ritualização do acasalamento sexual e uma forma social de garantir a continuidade do “homo sapiens”. Mas, como qualquer casal sabe, o casamento não passa de um daqueles “pretextos” que os cônjuges assumem socialmente para realizar intimamente uma variedade de práticas não lá muito “politicamente corretas” de acordo com os códigos evolutivos...

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Teses sobre o desejo (5)

Com o sexo, a perda de autonomia reprodutiva trouxe, para cada ser vivo, a questão da alteridade. Esta entrada súbita do “outro” para a vida, no lugar da existência meramente egotística dos primeiros seres unicelulares, só pode ter sido recebida como um verdadeiro trauma para o processo da vida em geral. Assim, não surpreende que a maioria dos seres tenha suas formas reprodutivas estabelecidas através de férreos rituais de acasalamento. Para a quase totalidade das espécies, salvo a humana, a cópula sexual se realiza através de formas determinadas, com limites de ação muito estreitos aos “parceiros”. Este ritualismo sexual programado se justifica como um limite à abertura da “alteridade” exigida pela relação sexual. Reduzir ao máximo à entrada do “acaso”  e permitir a  que a seleção natural faça seu trabalho combinatório através do sexo é objetivo dos rituais instintivos de acasalamento que possuem fortes pregnâncias biológicas: cores, cheiros, sons... Nos animais, portanto, a cultura (o ritual) se alia à natureza (emanações biológicas) para garantir a continuidade da espécie.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Teses sobre o desejo (4)

Evidentemente, o desejo tem a ver com a sexualidade. O que é o sexo em relação à libido e ao desejo? Sexo é exatamente o que diz seu nome. A palavra “sexo” tem a mesma raiz etimológica que “secção” e “seccionamento”. Sexo é corte,  rasgo, fissura. Durante aproximadamente 3 bilhões de anos a vida se desenvolveu na Terra através da reprodução assexuada. A cissiparidade significava autonomia reprodutiva, cada organismo se autoclonando com independência e sem auxílio dos “outros”. Quando, há cerca de 1 bilhão de anos,   surgiram os primeiros eucariontes sexualmente ativos, esta mutação deve ter sido considerada como uma aberração e um verdadeiro trauma.  Para estes novos seres vivos, só era possível seguir adiante arranjando um “parceiro” para colaborar. Ou em outras palavras, mais filosóficas: com a sexualidade, cada ser teve que se abrir a um “outro”  para que a espécie continuasse. E com a entrada do “outro” na cena existencial vieram duas coisas: a individualidade (cada ser tinha um código genético único) e a mortalidade.  Antes, cada organismo era uma mera cópia genética um do outro e não havia, por assim dizer, individualidade, tampouco morte.  Após, cada ser passou a trazer em si uma marca genética singular que a morte faz desaparecer. Mas, apesar da perda de autonomia reprodutiva, a eclosão da sexualidade se revelou um sucesso evolutivo. Antes, a evolução só se dava através de mutações quase sempre fatais e com um passo altamente moroso. Com o sexo, a combinação genética dos gametas produziu rapidamente uma diversidade de seres que tornou o fenômeno da vida muito mais resistente, por sua complexidade, às ameaças de catástrofes cósmicas, geológicas e climáticas. E muito mais complicado também...

Teses sobre o desejo (3)

Desejo e linguagem estão assim intrinsecamente correlacionados.  O desejo é sempre Simbólico enquanto a libido é Real (e o amor, Imaginário, mas este é outro assunto...). Podemos entender o desejo não como algo “natural”, algo que nos comporia em acordo com a natureza. Assim é o instinto: uma sincronia do ser com a natureza. Já o desejo se estabelece sempre como algo estranho, defasado, “assíncrono”: é antes uma fonte de perturbação ao nosso caráter “natural”.  É este caráter perturbatório, aliás, a fonte de sua repressão, já que aprendemos com a psicanálise, que o desejo é sempre reprimido. O importante da relação entre linguagem e desejo é o que torna toda figura de linguagem também uma figura de desejo. Todo símbolo, toda palavra, não traz apenas um significado que precisa ser decifrado, mas também um desejo que demanda interpretação. Todo signo transmite alguma coisa a mais do que sua informação: por que ele foi emitido? O que se deseja, ao se comunicar alguma coisa?