sexta-feira, 26 de julho de 2019

Rosangela Ausente, por Guilherme Preger



“Você foi muito importante para mim e um dia serei muito importante para você. As pessoas irão procurar você para falar de mim”. Foi eu o que disse a ela na partida. Ter vindo Rosangela a mim foi Destino. Eu ir a Deus é obrigação.
            Um dia eu simplesmente apareci com a cor de minha aura. Você vê a minha cor? Fui da Marinha, porteiro de boate, borracheiro, mendigo. Outros tempos, lutei boxe. Deus me escolheu porque sei lutar. A Missão era muita. Julgar os vivos e os mortos.  
Não, não é glória, não. Eu faço isso obrigado. Senão não fazia nada disso.
            Aqui sou o Rei. Quando precisam de mim me chamam. Os agitados. Eu agarro firme, o sujeito grita. Eles não têm culpa. Os doentes mentais são como beija-flores: nunca pousam, ficam a dois metros do chão. Eles têm medo de ser esquecidos. Eles não veem a cor da aura.
            Quando estava na rua, Jesus apareceu para mim em seu manto azul. Ele me disse: “Eis o fim dos tempos. Eu prometi que ninguém, nem o menor,  ficaria para trás.  Tu sabes o que deves fazer. Noé soube e construiu sua arca. Se Tu sabes o nome, tu sabes como salvar. Ninguém deve ser esquecido”.
            Eu visto esse manto, pois foi o manto que Jesus se apresentou a mim. Com seu estandarte.
            Aprendi a costurar em minhas transformações. Virgem Maria me criou em seus braços. Mas ninguém me ensinou a escrever.
Eu vim para salvar a humanidade, então tenho que ter esses mantos de Cristo, bordados com os nomes de quem vai se salvar quando acabar o mundo. É obrigação. EU VOU DEIXA ESTE GLOBO ESPLENDO.
EU PRECISO DESTAS PALAVRAS-ESCRITAS. Escrevo uma a uma. Coisas, bichos e pessoas. AS HISTORIAS UNIVERSAL.
Esses jornais que todo mundo joga fora. Têm muitas histórias. Esse senhor morreu num acidente de carro. Anoto o nome, a profissão, a idade. Está no meu manto. Jornais são pessoas.
EU VOU PASSAR REVISTA CORPOS HOMES CAHIDOS CARBONIZADOS E OS MORTOS REVERTER VOSSOS CORPOS JUNTOS VOSSOS ESPIRITOS.
Aqui se joga fora tudo. Os jornais, talheres, panos, vassouras. Eu recolho, guardo e salvo. Faço meus sembrantes. Eu quero toda letra que jogam fora. Letra não será esquecida. Em minha passagem levarei tudo comigo. Para meu reconhecimento.
(As coisas jogadas fora têm grande importância - como um homem jogado fora. Cada coisa ordinária é um elemento de estima. Loucos de água e estandarte).
PORTA SEIOS PARA MOÇA MARCA DE MILLUS/ BRILHANTINA PERFUMADA PASSAR NOS CABELOS/ PASTA DENTAL MOLHA A ESCOVA ÁGUA BOTA UM POUCO DE CREME/ UM PEDAÇO DE TAUBA 20 PREGOS PARA PEGAR LADRÕES 5 CENTÍMETROS ABAIXO DO CHÃO.
Meu quarto é barca, labirinto. Ninguém pode entrar nele sem se perder. Para salvar, pergunto a questão que Jesus me apresentou: Qual a cor de minha aura? Erram. Só Rosangela não responde. Rosangela Maria, Virgem Santa, diretora de tudo que eu tenho. 
Gosto das moças bonitas dos concursos. Elas têm cetro e coroa. Os concursos de misses representavam a união dos povos. Se hoje eles não têm mais importância. Isso é mau sinal. É o fim dos tempos.
Rosangela não vê a cor da aura.
Tudo bem, mas um dia você verá.
Agora é o que dizem, Rosangela vai embora. Fiz o trono para ela com essas correntes. Assim Ela estará salva, guardada.
Senta nesse trono, Rosangela. E Eu te deixarei partir.
(Rosangela se senta no trono e ele beija sua mão).
Agora vista essa camisola e deite nessa cama que fiz para nós. Como Romeu e Julieta.
(Rosangela se recusa a deitar).
Rosangela, você nunca foi ao teatro?
Agora passo fome. ROSANGELA AUSENTE. Paralelepípedo.
434 – COMO – É QUE EU – DEVO FAZER UM MURO NO FUNDO DA – MINHA CASA.

(escrito para o Clube da Leitura RJ)