terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Um homem

Ele virá não como um cavalo vem
tampouco uma cobra, sorrateira
e armada para o bote.
Ele virá como um homem
só, um homem simples, um homem
na medida exata de um homem.
Ele não estará acima do mal e do bem.
Este homem trará tão somente
um corpo com espessura de carne.
Um corpo que não tenha talvez uma história
nem explicações, mas palavras,
sons, ecos, gritos, ruídos e alardes,
ele não precisa de ouvidos para despejá-los,
mas que acolham seu silêncio,
este sim o ruído mal suportável. 
Ele não precisa de olhos que o admirem,
mas que reconheçam nesse corpo
a contida alegria em seu menor gesto.
Um homem e seu corpo,
talhado por aparelhos
e adestrado por batalhas,
ele aprendeu a não esmurrar os muros,
mas a contorná-los.
Há um encontro à espera deste homem,
ele não virá como um cavalo vem
tampouco um cão para ser domesticado,
ele virá como aquele que abandonou seu passado
e esqueceu seu futuro.

Teses sobre o desejo (11)

O desejo é o desejo do Outro. Esta genial fórmula lacaniana divide o desejo em duas partes: o desejo é desejo de desejo, desejo de desejar; e é um desejo de, do, Outro, um desejo outro. Nesta fórmula, portanto, está presente a divisão entre o Mesmo (o desejo do desejo) e o Outro (desejo do outro) que traduz o paradoxo do desejo que circula sobre si mesmo, num arco ou numa dobra, mas sem se fechar ou se completar.  Ora, a incompletude do desejo, seu não-fechamento, é precisamente aquilo que o faz se movimentar, que o impede de se estabilizar como o Mesmo.  Manter-se como o Mesmo é o ideal narcísico que, curiosamente, é também o ideal neurótico o que indica que a neurose é um caso especial do narcisismo, o que Freud, aliás, foi o primeiro a intuir. Ao fechar-se loucamente para a entrada, chegada, para a “penetração” do Outro, o neurótico apenas demonstra o apego à imagem idealizada de si próprio, vendo em qualquer alteridade uma potencial ameaça a sua tão prezada mesmidade.  

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Água-viva

Começa então um caminho,
ele se confunde com o passo
como escondida nos braços
está a promessa do abraço.

No início, só sensações,
estranha esta vertigem,
talvez não seja início
pois não se enxerga a origem.

Aonde quer que se vá
para o passo é só passagem
onde soa doce melodia
avisar não levar bagagem

além do mais difícil afeto,
frágil, mas na carne impresso.
Não seria solução
cortá-lo por falta de nexo.

Tampouco necessário
carregá-lo como um estigma.
Este afeto leva a gestos
que se inscrevem no ar sem enigma,  

porém insondáveis. Como linhas
coladas a uma superfície
e que se integrassem a ela
como a grama numa planície

mas moventes como a água-viva
é a água mais viva e ativa
e que arde, pois é ardência
ela, a chama mais incisiva.

Neste mover não mais se discerne
o que está dentro, o que está fora,
É pulsação, batimento,
um ritmo dizendo Agora!,

a vibração na atmosfera
que faz do ar sopro e alento,
e traz à corrente sanguínea
elétrico estremecimento.

Excede toda posse e senso,
seu sentido qual seria?
Menos andamento que onda,
menos história que alegria.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Here's where the story ends

Aqui a história termina,
e ali ela recomeça,
como num quebra-cabeça
onde faltasse uma peça
que não tivesse importância
pois melhor é desmontá-lo
para juntá-lo em mil arranjos,
polígono de mil lados.
Cada dia é um abalo
para o qual faltam asas de anjo
mas que equilibra no embalo.
O sol lá fora é um fardo,
mas não falha sua fagulha
e ainda dá bom bronzeado.
O olhar da moça é um dardo
mirado em suas certezas,
mal treme sobre o salto-agulha
e nunca leva estabaco.
A vida é o que se segura
como pedras diminutas
que formassem estranho ábaco.
Qual secreta matemática
evitaria o desenlace
certo, a previsível cena?
Não há conclusão tão trágica
que também não tenha graça,
não sua significação cômica,
mas a que no instante acena
com a oportunidade cósmica,
aquela que, num relâmpago,
se funde com o fundo do osso
e dá um sopro no estômago.
Este é o clarão que mais cega
para que a retina fique fina
e que distante distingua
o traço invisível da linha.
Linha de enrolado novelo
ou insólita novela.
Linha para apurado tato
que se desfia sem destino
pois o fio é a própria fibra
com que se arma uma tela.
E que delicada língua
soletraria  a sílaba
com que se desdobra o segredo?
Mesmo a deriva é um enredo
como uma intricada trama
de uma rede em que cada nó
fosse seu ponto central.
Perder-se enfim não é mal,
perder-se é um caminho só,
perder-se é saber quão difícil
seria precisar qual
seu término, o seu início.

Guilherme Preger